Entrevista com Gilmar Mascarenhas PARTE I


O jornal Brasil de Fato publicou trechos de uma entrevista exclusiva realizada pelo GT Comunicação dos Comitês Populares da Copa de Porto Alegre com o professor adjunto do Instituto de Geografia - PPGEO (Prog. de Pós-graduação em Geografia) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Comitê Popular da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Rio, Gilmar Mascarenhas.
Gilmar Mascarenhas fez doutorado em Geografia Humana pela USP, sob orientação da Dra. Odette Seabra. A sua tese, defendida em 2001, enfoca determinados aspectos da presença do futebol na evolução urbana brasileira. Também estudou, a partir de 2003, a política urbana relacionada à organização e realização dos Jogos Panamericanos na cidade do Rio de Janeiro em 2007: a concepção de gestão urbana, os interesses envolvidos, a reação da sociedade civil organizada, a parceria público-privada, os impactos e o legado futuro do Pan-2007.
O professor de geografia diz que nos últimos anos o Brasil optou por se projetar mundialmente através dos megaeventos, mas que o custo disso quem paga é o cidadão. “Os efeitos desses eventos são dívidas e o desfinanciamento de áreas como a saúde e a educação. No ano do Pan, o Rio enfrentou sua maior epidemia de dengue. Todo o dinheiro estava comprometido com os jogos. Os eventos são para assistir e não para desenvolver o esporte”, explica.
Segundo ele, hoje os eventos esportivos carregam interesses econômicos, políticos, sociais e ideológicos. E por demandar um investimento cada vez maior, a sociedade civil começou a exigir e discutir o legado desses eventos.
Leia a íntegra da entrevista.
Você defendeu sua tese de doutorado em 2001 sobre a presença do futebol na evolução urbana brasileira e, desde então, vem pesquisando o tema dos esportes na vida urbana. Que conclusões você chegou?
Gilmar Mascarenhas - Em 2003 eu comecei a estudar os impactos dos Jogos Panamericanos sobre a cidade. Elaborei um histórico sobre grandes eventos esportivos (Jogos Olímpicos, Panamericanos, Copa do Mundo) para verificar que tipo de impactos e arranjos de políticas urbanas foram sendo feitos. O que encontramos nesses estudos é que quase sempre você tem a gestão urbana como um duelo entre interesses sociais e das grandes empresas. Esses grandes eventos se tornaram uma porta, para que através de uma situação extraordinária, grandes projetos urbanos capitalistas, encontrem uma ocasião especial para se impor, a despeito dos regulamentos urbanísticos e ambientais e dos interesses sociais.
Também verifiquei que, durante uma época muito extensa, havia nesses grandes eventos uma relativa preocupação com o interesse social. Um exemplo disso, era a destinação das vilas olímpicas para habitações de média e baixa renda. Isso se verificou da década de 1950 (no contexto do Estado de Bem Estar Social) até 1980, em Moscou. Já a partir de 1988, em Seul, as vilas olímpicas passam a ser projetos de habitação, digamos, para classes sociais mais altas.
No meu estudo verifico dois processos que vinham andando de maneiras distintas e independentes. Um deles, no âmbito da gestão do esporte, eram as mudanças, a maneira como o esporte se organiza, enquanto uma indústria. De outro lado, uma mudança na questão da gestão urbana, do planejamento urbano. Esse último é mais conhecido. Sabe-se que depois das décadas de 1970, 1980 esse modelo de plano diretor ou master plan, planejamento compreensivo e tal, ele começa a entrar num desgaste. Começa o discurso de que faltam recursos para o Estado e consequentemente a defesa do “Estado Mínimo”, da doutrina neoliberal. Enfim, há todo um movimento que vai fazer emergir o que seus defensores chamam de planejamento estratégico. E, ao mesmo tempo, essa mudança que o David Harvey coloca muito bem que é a guerra entre os lugares. Que o capital está muito mais fluido no planeta, e aí as cidades teriam que competir entre si para atrair mais investimentos. É uma guerra de marketing, decity marketing. Bom, isso no âmbito da gestão urbana.
E o que acontece com o esporte?
O esporte é uma atividade que há mais de um século adquiriu um patamar de organização muito forte no mundo inteiro. É hoje um fenômeno social universal. Embora sempre muito ligado a interesses econômicos, o espetáculo, a venda de ingressos, ocorre uma mudança brusca na década de 1980. No âmbito do futebol, começa na Fifa com João Havelange, brasileiro que assume em 1974. Ele, na posse já diz assim: “Eu vim mudar inteiramente a forma como a Fifa funciona. Eu vim vender um produto chamado futebol”. Até então você tinha as transmissões públicas, abertas. Havelange começa a vender a transmissão das imagens da Copa do Mundo numa escala de valores exponencial. Em 1980, no âmbito do Comitê Internacional, também se elege o Juan Antonio Samaranch, um espanhol que tem no seu passado político um forte envolvimento franquista, tendo sido membro da Falange Española em sua juventude, e recebido diversas nomeações políticas enquanto o regime esteve vigente. Ele retoma essa mesma atitude, de juntar os grandes negócios com o esporte.
No caso do olimpismo, isso é gritante. Até então os Jogos Olímpicos tinham um ideário muito forte, ligado lá na origem da retomada das práticas corporais lúdico-esportivas na idade moderna. O esporte como uma linguagem de integração entre os povos. O esporte como uma prática de regeneração das pessoas, de saúde física, mental. Mens sana in corpore sano, todo esse ideário do esporte olímpico que dizia que deveria afastar qualquer coisa ligada a dinheiro. Até a chegada de Samaranch o atleta olímpico é aquele sujeito que jamais havia ganho um centavo sequer pelo esporte. Esporte por amor, por uma causa: a causa esportiva. Havelange e Samaranch vão cortar tudo isso. Esporte é dinheiro, eis o novo lema. O novo modo de gestão do esporte se associa às grandes mídias, à expansão da TV. A televisão tem um apelo forte de assistência e essas empresas vão perceber ali um canal muito forte. O corpo do atleta é o corpo mais exposto na mídia. A mídia pode apoiar o cinema, o teatro, as outras artes, mas não vai poder colocar na testa ou na camisa de ninguém uma Coca-Cola. O que é um corpo esportista? É um corpo todo ele loteado. No futebol, os clubes alugam para as marcas o calção, a manga... Um corredor de Fórmula 1 tem todos os milímetros do corpo medidos em valores econômicos. Quanto vale a exposição daquilo ali? Então, essa expressão midiática do esporte, essa relação entre negócio, mídia e esporte vai virar esse grande complexo econômico que nós temos no mundo de hoje.
Que mudanças esses dois grandes processos trouxeram na realização dos megaeventos?
Com a gestão urbana nessa conjuntura neoliberal que vivemos hoje, city marketing (guerra dos lugares, guerra das cidades por uma imagem internacional que sugira ambiente seguro e promissor para investimentos) e o esporte tornado essa nova indústria muito forte, as cidades vão perceber que realizando megaeventos esportivos vão se projetar mundialmente, porque são espetáculos que bilhões de pessoas assistem. Além disso, o esporte traz um ideário de forte conteúdo positivo: praticar esporte é saúde, vigor, juventude, competitividade, a união dos povos. Quer dizer, há todo um complexo simbólico que envolve o esporte e que ele vai emprestar às cidades e aos países que vão realizar esses megaeventos. Então, verifico essa confluência de interesses entre a evolução da gestão urbana nos últimos 30 anos e a evolução do mundo do esporte. Isso vai fazer com que mude a forma de realização desses eventos vivida até a década de 1980 que era gastar pouco e de alguma forma deixar um legado habitacional no caso dos Jogos Olímpicos. Vou dar um exemplo forte. Na Copa do Mundo da Espanha em 1982, nós temos uma partida que ficou marcada para o Brasil (foi eliminado em jogo dramático contra a Itália), realizada em um estádio chamado Sarriá, de pequeno porte em Barcelona, que atualmente não serviria nem para treinamento das seleções para a Copa do Mundo. A Fifa exige hoje estádios de um padrão tecnológico, construtivo altíssimo. Estou falando da Fifa, mas poderia falar também do Comitê Olímpico. Então, qual é para mim o cerne da questão? A questão do legado no plano esportivo é que antigamente fazer um megaevento esportivo era um país ou uma cidade receber os povos de todo o planeta para praticar esporte nas condições em que o esporte era praticado ali. Como é que se pratica esporte no Brasil? Se pratica assim, dessa forma, nestas instalações, desse jeito, então era como dizer, vem jogar comigo, vem compartilhar a experiência rica da alteridade, de aprender com o outro, de viver outras culturas. Os megaeventos de hoje anulam as singularidades locais, regionais, nacionais, pela imposição de um padrão único internacional, de instalação esportiva, de ritual, de procedimentos. A sede do megaevento se torna assim um não-lugar, pois iguala-se a todos os outros. A única expressão de identidade local fica por conta das cerimônias olímpicas de abertura, onde cada cidade e país procuram contar um pouco de sua historia e de sua cultura. No mais, tudo é normatizado, padronizado, pasteurizado. A vila olímpica, por exemplo, obedece a um padrão internacional. Os atletas ali dentro, confinados no luxo, não se sentem em outro país, em outra cultura. Estão num lugar desprovido de identidade, como são os aeroportos. Ao montar um cenário totalmente novo, com estádios superdimensionados, logo depois que o circo acaba, fica o país, a cidade com um acervo de equipamentos esportivos que nada condiz com as demandas, com as necessidades do seu público.
Como você avalia a construção dos estádios para a Copa do Mundo 2014?
Menos da metade das 12 cidades-sedes tem regularmente clubes na primeira divisão. Menos da metade das cidades tem um mercado capaz de manter aqueles estádios. Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal são cidades sem clubes na primeira divisão, nem na segunda... Então está se construindo estádios que depois serão verdadeiros elefantes brancos. Um estádio desses tem um custo de manutenção que é entorno de 10% ao ano do custo de construção dele. É um custo muitíssimo alto. Você só consegue justificar esse custo se tiver uma fluência de público constante. Vide o caso da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Foram construídos novos estádios, e agora o governo não sabe o que fazer com eles. O caso mais dramático é o estádio Green Point, construído na Cidade do Cabo. A um custo de meio bilhão de dólares, em zona nobre da cidade (Green Point é uma bela área verde, junto ao centro e ao porto que foi renovado, tornado área de lazer), o estádio atende a um padrão de sofisticação que não era interesse do governo local. Este queria um estádio mais modesto e localizado em zona menos valorizada, ciente de não ser o futebol um esporte de grande popularidade na região. Mas a Fifa demandou aquele equipamento caro, cuja localização pudesse exibir ao mundo uma África civilizada, moderna, desfrutando da bela paisagem costeira, tendo ao fundo o Table Mount, montanha turística que constrasta de forma magnífica com o mar. O resultado é que este estádio custa aos cofres públicos 4,6 milhões de euros anuais, e sem a menor perspectiva de retorno desse investimento. Então, a gente começa a pensar assim: como é que fica a questão da soberania nacional por conta desses megaeventos? O quanto os países se vendem e abrem mão da soberania nacional porque a Fifa falou que quer o estádio aqui. Na cidade de Johanesburgo também se construiu um estádio. Eu tenho uma citação da época de um conselheiro municipal, o sr. Benit-Gbaffou. Ele disse: “Trazer a Copa do Mundo é desenvolver a cidade. Isso torna ela cara. Não tem outro jeito, os pobres vão ter que sair, a cidade precisa apenas daqueles que podem pagar por ela”. E um depoimento de um morador: “Eu chorei duas vezes por causa dessa copa. Primeira vez foi quando o país foi eleito para a Copa. Eu chorei de emoção. Depois chorei quando perdi a minha casa, onde eu morava há 30 anos”.
Observemos o caso de Recife, que tem três clubes de futebol importantes, Sport Recife, Santa Cruz e o Náutico. Cada um tem seu próprio estádio, mas vão construir um novo estádio para a Copa. A pergunta é: Qual o clube que tem seu próprio estádio há várias décadas, onde construiu sua história, sua identidade, e, do ponto de vista prático, onde pode jogar com lucro, pois com despesas bem menores, vai deixá-lo para jogar no estádio da Copa, que fica no município da grande Recife, em São Lourenço das Matas, longe das massas e a um custo muito superior?
Já foram aprovados pelo BNDES R$ 400 milhões, agora mais R$ 280 milhões. Vão fazer ali a Cidade da Copa. É todo um projeto de conjunto residencial, um shopping center, um centro médico, ou seja, a ideia de construir um bairro de classe média nessa região e no meio dele um estádio. E esta área não é um vazio urbano. Estive lá, moram muitas famílias, as pessoas plantavam ali. Essas pessoas todas serão varridas dali, em nome de um empreendimento imobiliário que tem como cerne, ou motivação central, um estádio condenado ao abandono e a produzir dívidas públicas.
A Fifa e o Comitê Olímpico exigem instalações esportivas num padrão arquitetônico e tecnológico que estão muito além da capacidade dos países?
O caso da África do Sul no ano passado é emblemático. Um país onde o futebol tem um apelo popular, sobretudo na população negra e pobre, porque a classe média é adepta do rugbi. Você pega os jornais de grande circulação e só vê rugbi e futebol europeu, numa clara rejeição ao futebol local, por ser este apoiado pelos pobres. Mesmo assim, fizeram estádios caros, dentro das exigências da Fifa. Até mesmo o Globo Esporte exibiu recentemente matérias que apresentaram o quadro de abandono e inutilidade da maioria dessas instalações. Alguns em cidades pequenas, como Iokkane e Mpulanga, cujos governos locais não têm recursos para manter estes novos elefantes brancos em sua paisagem.
E na África do Sul os movimentos sociais foram muito fortes. Isso é um dado novo. Nos últimos 10 anos vem se criando uma consciência de que esses megaeventos são muito caros, são feitos com dinheiro público e tem que deixar algum legado para a população. Isso é um dado que é recente na história desses megaeventos. A África do Sul promoveu diversas manifestações.
No caso da China, um governo altamente autoritário, também houve manifestações. No percurso da tocha olímpica, pelo mundo, vários movimentos internacionais se interpuseram à marcha para criticar a postura do governo chinês em relação ao Tibet. O Comitê Olímpico Internacional sabe que tem nas mãos um produto muito caro, que é a imagem dos jogos olímpicos. Não interessa ao comitê manchar essa marca valiosíssima. Não interessa que os jogos apareçam como algo que causou um prejuízo à cidade, ao país, ou que esteja associado a movimentos e interesses que o senso comum renegue. Então, o comitê solicitou ao governo chinês que ele não fosse tão autoritário assim, que ele permitisse que a sociedade civil fizesse manifestações. Claro, em locais distantes, fora do alcance da mídia internacional, mas que fizesse isso. As pessoas que quisessem fazer um ato tinham que se dirigir até a autoridade policial mais próxima e fazer o pedido. O que fez o governo chinês? As pessoas se dirigiam à delegacia, faziam o registro e eram presas no ato. Só saíram depois que acabaram as olimpíadas. Então, eu vou concordar com o professor Carlos Vainer que vem trabalhando com o conceito de “cidade de exceção”. Você cria essa cidade de exceção, um ambiente jurídico-político diferente, que paira sobre as normas estáveis do estado de direito, e coloca o evento como se fosse algo grandioso, reluzente, que cai do céu como uma solução para os males do país. Vou lembrar o discurso do presidente Lula na Dinamarca: “Finalmente o Brasil conquistou sua cidadania internacional”. O que significa isso? Significa apenas você realizar uma olimpíada, não é você conquistar patamares superiores de educação, saúde, habitação, saneamento...
No caso dos jogos de Atenas, o governo quer apagar da sua história. Foi um evento que apenas expôs as dificuldades do país. Um país que vive hoje uma crise imensa também em função da dívida desse megaevento. Isso não interessa ao Comitê Olímpico. Por que Atenas entrou no jogo? Porque Atenas empresta ao Comitê Olímpico uma legitimidade que o movimento olímpico precisa ter. O olimpismo vem lá dos tempos clássicos da Grécia antiga, de Olímpia. Então, são supostamente fiéis a uma história de longa data. Atenas entrou para emprestar credibilidade, dar legitimidade e acabou causando vários problemas. No ano passado, em novembro realizamos o ETTERN-IPPUR, uma conferência internacional sobre cidades e megaeventos. Diversos estudiosos vieram de outros países para debatermos esse tema emergente. Da Grécia veio o Stavros Stavrides, professor da Universidade de Atenas. Ele nos trouxe um panorama bastante crítico de tudo o que ocorreu no país antes, durante e após as olimpíadas. Da mesma forma, contamos com outro acadêmico, o Alan Mabin, da África do Sul, para relatar os processos ali ocorridos. Em comum, vimos o autoritarismo, a ausência de diálogo, a repressão aos movimentos sociais, os gastos elevados e o legado ínfimo.
É real esse ideário de que o megaevento vai desenvolver uma cidade, um país?
A partir do estudo que fiz acerca dos Jogos Panamericanos no Rio pude comprovar que não. A previsão inicial era gastar R$ 250 milhões e foram gastos R$ 3,7 bilhões, e mais de 90% foi investimento público. Ou seja, um gasto muito alto, quinze vezes mais que o evento que o antecedeu, os Jogos Panamericanos de Santo Domingo, em 2003. E um gasto num evento que comprometeu seriamente a saúde, a educação da cidade porque a Prefeitura desfinanciou diversos setores. Vou citar só dois casos: o Rio viveu a maior epidemia de dengue da sua história porque se desmobilizou no enfrentamento desta questão, e em outubro de 2007, três meses após os Jogos, a encosta do Túnel Rebouças desceu, soterrou a entrada do túnel. Felizmente sem mortes, apenas o dano para a circulação de veículos. Qual foi o motivo disso? Existe uma empresa, a GeoRio, que monitora todas as encostas da cidade. A partir de 2003 a Prefeitura reduziu a 1/3 o contrato feito com a GeoRio. Então ela reagiu assim, como que quisessem dizer: “Tá bom, vocês fingem que pagam e eu finjo que vou fazer meu trabalho”. Felizmente não houve vítimas, mas desmoronou a entrada de um túnel importantíssimo para a cidade do RJ. Lembro as palavras de um colega que participou do Comitê Social do Pan (eu participei da fundação desse comitê no ano de 2005), em uma entrevista numa rádio do Rio: “O Pan se ergue sobre montanhas de cadáveres”, relatando a situação dos hospitais públicos municipais que antecederam os jogos Pan.
No caso de Santo Domingo, estive lá para conferir o legado do evento. Ele custou 240 milhões de dólares, oito vezes mais que o inicialmente previsto. Toda a periferia da cidade foi relegada ao abandono. Apenas a zona leste, que é a zona de expansão do capital imobiliário, foi beneficiada. A cidade consolidou com o Pan 2003 sua natureza segregada. Neste quadro de injustiça social, uma liderança nacional, o padre salesiano Rogelio Cruz, da teologia popular, mobilizou a sociedade contra os desperdícios e acintes dos jogos na República Dominicana e foi intensamente censurado e perseguido. No dia da abertura dos jogos, Rogelio Cruz liderou, a partir de Cristo Rey, bairro pobre da capital, uma passeata de 500 manifestantes, portando uma tocha da fome (paródia à tocha olímpica). O protesto, que se propunha a denunciar a situação nacional (e não impedir ou boicotar o evento) foi violentamente reprimido pela força policial militar, a tiros de escopeta e gás lacrimogêneo. O bairro manteve-se militarmente ocupado durante todo o evento. O então presidente da República, Hipólito Mejía, declarou à imprensa que o referido padre, a quem designava de “o novo Mao Tse Tung dominicano”, padecia de problemas psíquicos. O acesso ao aeroporto foi ampliado e melhorado, de forma que o projeto de cidade é claramente desenvolver o turismo, que é um dos esteios da economia nacional. A situação dos pobres não foi afetada, exceto pelo aumento da dívida externa junto ao FMI, que acaba incidindo justamente sobre os setores de investimento em serviços fundamentais à população de baixa renda. Ao menos, o Pan 2003 não desperdiçou tanto dinheiro em instalações, como fez o Pan do Rio.
No caso dos Jogos deste ano, em Guadalajara, no México, o que venho acompanhando à distância sugere os mesmos problemas gerais. A vila panamericana, por exemplo, já mudou de lugar três vezes, por desrespeitar a legislação e atacar os direitos dos pobres, que reagiram e continuam reagindo. Inicialmente a vila estava prevista para ser edificada em Parque Morellos, vizinho à área central da cidade, com objetivos de revitalização do bairro e aproveitamento dos atrativos históricos do centro. Foi transferido o projeto para o Parque Alameda, e deste para um terceiro local, El Bajío, no município de Zapotan, onde também encontra protestos populares intensos, posto que implica em remoção forçada de população residente. Todavia, estando já há poucos meses do evento (que ocorrerá em outubro), mesmo com embargo jurídico, o governo nacional mexicano, pressionado pela Odepa e pelos empresários envolvidos, interviu e decretou que a vila não poderia deixar de ser edificada no local, a despeito dos moradores afetados.
Em suma, em todas as edições de megaeventos esportivos surgem as mesmas promessas, que não são cumpridas. Não por acaso, as últimas edições dos jogos olímpicos expressam um descontentamento crescente e a eclosão de movimentos civis anti-olímpicos. O auge desta “crise” foi Atenas (jogos de 2004), que, como vimos, custou elevadas cifras, gerou prejuízo e pouco beneficiou a população local. Preocupado com o desgaste da imagem olímpica, no ano seguinte, o COI elegeu Londres para sede de 2012 com base na dimensão “social” do projeto, que apontava para a completa regeneração urbana de uma zona desindustrializada, decadente. Um projeto que olhava para a periferia da cidade e que, de alguma forma, resgata o mito do modelo Barcelona, que conseguiu conjugar a grandiosidade do evento com projetos de revitalização de zonas decadentes e extensão de infra-estrutura urbana para o subúrbio. Todavia, mesmo em Londres, podemos observar um processo arbitrário de retirada de populações e sobretudo pequenas empresas (umas 300, segundo o geógrafo Mike Raco, do King´s College London), da área onde se ergue o Parque Olímpico. Ou seja, não era um vazio abandonado, ali havia muita gente e uma vida econômica intensa.

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