O jornal Brasil de Fato publicou trechos
de uma entrevista exclusiva realizada pelo GT Comunicação dos Comitês
Populares da Copa de Porto Alegre com o professor adjunto do Instituto
de Geografia - PPGEO (Prog. de Pós-graduação em Geografia) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Comitê
Popular da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Rio, Gilmar Mascarenhas.
Gilmar
Mascarenhas fez doutorado em Geografia Humana pela USP, sob orientação
da Dra. Odette Seabra. A sua tese, defendida em 2001, enfoca
determinados aspectos da presença do futebol na evolução urbana
brasileira. Também estudou, a partir de 2003, a política urbana
relacionada à organização e realização dos Jogos Panamericanos na cidade
do Rio de Janeiro em 2007: a concepção de gestão urbana, os interesses
envolvidos, a reação da sociedade civil organizada, a parceria
público-privada, os impactos e o legado futuro do Pan-2007.
O
professor de geografia diz que nos últimos anos o Brasil optou por se
projetar mundialmente através dos megaeventos, mas que o custo disso
quem paga é o cidadão. “Os efeitos desses eventos são dívidas e o
desfinanciamento de áreas como a saúde e a educação. No ano do Pan, o
Rio enfrentou sua maior epidemia de dengue. Todo o dinheiro estava
comprometido com os jogos. Os eventos são para assistir e não para
desenvolver o esporte”, explica.
Segundo
ele, hoje os eventos esportivos carregam interesses econômicos,
políticos, sociais e ideológicos. E por demandar um investimento cada
vez maior, a sociedade civil começou a exigir e discutir o legado desses
eventos.
Leia a íntegra da entrevista.
Você
defendeu sua tese de doutorado em 2001 sobre a presença do futebol na
evolução urbana brasileira e, desde então, vem pesquisando o tema dos
esportes na vida urbana. Que conclusões você chegou?
Gilmar
Mascarenhas - Em 2003 eu comecei a estudar os impactos dos Jogos
Panamericanos sobre a cidade. Elaborei um histórico sobre grandes
eventos esportivos (Jogos Olímpicos, Panamericanos, Copa do Mundo) para
verificar que tipo de impactos e arranjos de políticas urbanas foram
sendo feitos. O que encontramos nesses estudos é que quase sempre você
tem a gestão urbana como um duelo entre interesses sociais e das grandes
empresas. Esses grandes eventos se tornaram uma porta, para que através
de uma situação extraordinária, grandes projetos urbanos capitalistas,
encontrem uma ocasião especial para se impor, a despeito dos
regulamentos urbanísticos e ambientais e dos interesses sociais.
Também
verifiquei que, durante uma época muito extensa, havia nesses grandes
eventos uma relativa preocupação com o interesse social. Um exemplo
disso, era a destinação das vilas olímpicas para habitações de média e
baixa renda. Isso se verificou da década de 1950 (no contexto do Estado
de Bem Estar Social) até 1980, em Moscou. Já a partir de 1988, em Seul,
as vilas olímpicas passam a ser projetos de habitação, digamos, para
classes sociais mais altas.
No meu
estudo verifico dois processos que vinham andando de maneiras distintas e
independentes. Um deles, no âmbito da gestão do esporte, eram as
mudanças, a maneira como o esporte se organiza, enquanto uma indústria.
De outro lado, uma mudança na questão da gestão urbana, do planejamento
urbano. Esse último é mais conhecido. Sabe-se que depois das décadas de
1970, 1980 esse modelo de plano diretor ou master plan, planejamento
compreensivo e tal, ele começa a entrar num desgaste. Começa o discurso
de que faltam recursos para o Estado e consequentemente a defesa do
“Estado Mínimo”, da doutrina neoliberal. Enfim, há todo um movimento que
vai fazer emergir o que seus defensores chamam de planejamento
estratégico. E, ao mesmo tempo, essa mudança que o David Harvey coloca
muito bem que é a guerra entre os lugares. Que o capital está muito mais
fluido no planeta, e aí as cidades teriam que competir entre si para
atrair mais investimentos. É uma guerra de marketing, decity marketing.
Bom, isso no âmbito da gestão urbana.
E o que acontece com o esporte?
O
esporte é uma atividade que há mais de um século adquiriu um patamar de
organização muito forte no mundo inteiro. É hoje um fenômeno social
universal. Embora sempre muito ligado a interesses econômicos, o
espetáculo, a venda de ingressos, ocorre uma mudança brusca na década de
1980. No âmbito do futebol, começa na Fifa com João Havelange,
brasileiro que assume em 1974. Ele, na posse já diz assim: “Eu vim mudar
inteiramente a forma como a Fifa funciona. Eu vim vender um produto
chamado futebol”. Até então você tinha as transmissões públicas,
abertas. Havelange começa a vender a transmissão das imagens da Copa do
Mundo numa escala de valores exponencial. Em 1980, no âmbito do Comitê
Internacional, também se elege o Juan Antonio Samaranch, um espanhol que
tem no seu passado político um forte envolvimento franquista, tendo
sido membro da Falange Española em sua juventude, e recebido diversas
nomeações políticas enquanto o regime esteve vigente. Ele retoma essa
mesma atitude, de juntar os grandes negócios com o esporte.
No
caso do olimpismo, isso é gritante. Até então os Jogos Olímpicos tinham
um ideário muito forte, ligado lá na origem da retomada das práticas
corporais lúdico-esportivas na idade moderna. O esporte como uma
linguagem de integração entre os povos. O esporte como uma prática de
regeneração das pessoas, de saúde física, mental. Mens sana in corpore
sano, todo esse ideário do esporte olímpico que dizia que deveria
afastar qualquer coisa ligada a dinheiro. Até a chegada de Samaranch o
atleta olímpico é aquele sujeito que jamais havia ganho um centavo
sequer pelo esporte. Esporte por amor, por uma causa: a causa esportiva.
Havelange e Samaranch vão cortar tudo isso. Esporte é dinheiro, eis o
novo lema. O novo modo de gestão do esporte se associa às grandes
mídias, à expansão da TV. A televisão tem um apelo forte de assistência e
essas empresas vão perceber ali um canal muito forte. O corpo do atleta
é o corpo mais exposto na mídia. A mídia pode apoiar o cinema, o
teatro, as outras artes, mas não vai poder colocar na testa ou na camisa
de ninguém uma Coca-Cola. O que é um corpo esportista? É um corpo todo
ele loteado. No futebol, os clubes alugam para as marcas o calção, a
manga... Um corredor de Fórmula 1 tem todos os milímetros do corpo
medidos em valores econômicos. Quanto vale a exposição daquilo ali?
Então, essa expressão midiática do esporte, essa relação entre negócio,
mídia e esporte vai virar esse grande complexo econômico que nós temos
no mundo de hoje.
Que mudanças esses dois grandes processos trouxeram na realização dos megaeventos?
Com
a gestão urbana nessa conjuntura neoliberal que vivemos hoje, city
marketing (guerra dos lugares, guerra das cidades por uma imagem
internacional que sugira ambiente seguro e promissor para investimentos)
e o esporte tornado essa nova indústria muito forte, as cidades vão
perceber que realizando megaeventos esportivos vão se projetar
mundialmente, porque são espetáculos que bilhões de pessoas assistem.
Além disso, o esporte traz um ideário de forte conteúdo positivo:
praticar esporte é saúde, vigor, juventude, competitividade, a união dos
povos. Quer dizer, há todo um complexo simbólico que envolve o esporte e
que ele vai emprestar às cidades e aos países que vão realizar esses
megaeventos. Então, verifico essa confluência de interesses entre a
evolução da gestão urbana nos últimos 30 anos e a evolução do mundo do
esporte. Isso vai fazer com que mude a forma de realização desses
eventos vivida até a década de 1980 que era gastar pouco e de alguma
forma deixar um legado habitacional no caso dos Jogos Olímpicos. Vou dar
um exemplo forte. Na Copa do Mundo da Espanha em 1982, nós temos uma
partida que ficou marcada para o Brasil (foi eliminado em jogo dramático
contra a Itália), realizada em um estádio chamado Sarriá, de pequeno
porte em Barcelona, que atualmente não serviria nem para treinamento das
seleções para a Copa do Mundo. A Fifa exige hoje estádios de um padrão
tecnológico, construtivo altíssimo. Estou falando da Fifa, mas poderia
falar também do Comitê Olímpico. Então, qual é para mim o cerne da
questão? A questão do legado no plano esportivo é que antigamente fazer
um megaevento esportivo era um país ou uma cidade receber os povos de
todo o planeta para praticar esporte nas condições em que o esporte era
praticado ali. Como é que se pratica esporte no Brasil? Se pratica
assim, dessa forma, nestas instalações, desse jeito, então era como
dizer, vem jogar comigo, vem compartilhar a experiência rica da
alteridade, de aprender com o outro, de viver outras culturas. Os
megaeventos de hoje anulam as singularidades locais, regionais,
nacionais, pela imposição de um padrão único internacional, de
instalação esportiva, de ritual, de procedimentos. A sede do megaevento
se torna assim um não-lugar, pois iguala-se a todos os outros. A única
expressão de identidade local fica por conta das cerimônias olímpicas de
abertura, onde cada cidade e país procuram contar um pouco de sua
historia e de sua cultura. No mais, tudo é normatizado, padronizado,
pasteurizado. A vila olímpica, por exemplo, obedece a um padrão
internacional. Os atletas ali dentro, confinados no luxo, não se sentem
em outro país, em outra cultura. Estão num lugar desprovido de
identidade, como são os aeroportos. Ao montar um cenário totalmente
novo, com estádios superdimensionados, logo depois que o circo acaba,
fica o país, a cidade com um acervo de equipamentos esportivos que nada
condiz com as demandas, com as necessidades do seu público.
Como você avalia a construção dos estádios para a Copa do Mundo 2014?
Menos da metade das 12 cidades-sedes tem regularmente clubes na primeira divisão. Menos da metade das cidades tem um mercado capaz de manter aqueles estádios. Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal são cidades sem clubes na primeira divisão, nem na segunda... Então está se construindo estádios que depois serão verdadeiros elefantes brancos. Um estádio desses tem um custo de manutenção que é entorno de 10% ao ano do custo de construção dele. É um custo muitíssimo alto. Você só consegue justificar esse custo se tiver uma fluência de público constante. Vide o caso da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Foram construídos novos estádios, e agora o governo não sabe o que fazer com eles. O caso mais dramático é o estádio Green Point, construído na Cidade do Cabo. A um custo de meio bilhão de dólares, em zona nobre da cidade (Green Point é uma bela área verde, junto ao centro e ao porto que foi renovado, tornado área de lazer), o estádio atende a um padrão de sofisticação que não era interesse do governo local. Este queria um estádio mais modesto e localizado em zona menos valorizada, ciente de não ser o futebol um esporte de grande popularidade na região. Mas a Fifa demandou aquele equipamento caro, cuja localização pudesse exibir ao mundo uma África civilizada, moderna, desfrutando da bela paisagem costeira, tendo ao fundo o Table Mount, montanha turística que constrasta de forma magnífica com o mar. O resultado é que este estádio custa aos cofres públicos 4,6 milhões de euros anuais, e sem a menor perspectiva de retorno desse investimento. Então, a gente começa a pensar assim: como é que fica a questão da soberania nacional por conta desses megaeventos? O quanto os países se vendem e abrem mão da soberania nacional porque a Fifa falou que quer o estádio aqui. Na cidade de Johanesburgo também se construiu um estádio. Eu tenho uma citação da época de um conselheiro municipal, o sr. Benit-Gbaffou. Ele disse: “Trazer a Copa do Mundo é desenvolver a cidade. Isso torna ela cara. Não tem outro jeito, os pobres vão ter que sair, a cidade precisa apenas daqueles que podem pagar por ela”. E um depoimento de um morador: “Eu chorei duas vezes por causa dessa copa. Primeira vez foi quando o país foi eleito para a Copa. Eu chorei de emoção. Depois chorei quando perdi a minha casa, onde eu morava há 30 anos”.
Menos da metade das 12 cidades-sedes tem regularmente clubes na primeira divisão. Menos da metade das cidades tem um mercado capaz de manter aqueles estádios. Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal são cidades sem clubes na primeira divisão, nem na segunda... Então está se construindo estádios que depois serão verdadeiros elefantes brancos. Um estádio desses tem um custo de manutenção que é entorno de 10% ao ano do custo de construção dele. É um custo muitíssimo alto. Você só consegue justificar esse custo se tiver uma fluência de público constante. Vide o caso da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Foram construídos novos estádios, e agora o governo não sabe o que fazer com eles. O caso mais dramático é o estádio Green Point, construído na Cidade do Cabo. A um custo de meio bilhão de dólares, em zona nobre da cidade (Green Point é uma bela área verde, junto ao centro e ao porto que foi renovado, tornado área de lazer), o estádio atende a um padrão de sofisticação que não era interesse do governo local. Este queria um estádio mais modesto e localizado em zona menos valorizada, ciente de não ser o futebol um esporte de grande popularidade na região. Mas a Fifa demandou aquele equipamento caro, cuja localização pudesse exibir ao mundo uma África civilizada, moderna, desfrutando da bela paisagem costeira, tendo ao fundo o Table Mount, montanha turística que constrasta de forma magnífica com o mar. O resultado é que este estádio custa aos cofres públicos 4,6 milhões de euros anuais, e sem a menor perspectiva de retorno desse investimento. Então, a gente começa a pensar assim: como é que fica a questão da soberania nacional por conta desses megaeventos? O quanto os países se vendem e abrem mão da soberania nacional porque a Fifa falou que quer o estádio aqui. Na cidade de Johanesburgo também se construiu um estádio. Eu tenho uma citação da época de um conselheiro municipal, o sr. Benit-Gbaffou. Ele disse: “Trazer a Copa do Mundo é desenvolver a cidade. Isso torna ela cara. Não tem outro jeito, os pobres vão ter que sair, a cidade precisa apenas daqueles que podem pagar por ela”. E um depoimento de um morador: “Eu chorei duas vezes por causa dessa copa. Primeira vez foi quando o país foi eleito para a Copa. Eu chorei de emoção. Depois chorei quando perdi a minha casa, onde eu morava há 30 anos”.
Observemos o
caso de Recife, que tem três clubes de futebol importantes, Sport
Recife, Santa Cruz e o Náutico. Cada um tem seu próprio estádio, mas vão
construir um novo estádio para a Copa. A pergunta é: Qual o clube que
tem seu próprio estádio há várias décadas, onde construiu sua história,
sua identidade, e, do ponto de vista prático, onde pode jogar com lucro,
pois com despesas bem menores, vai deixá-lo para jogar no estádio da
Copa, que fica no município da grande Recife, em São Lourenço das Matas,
longe das massas e a um custo muito superior?
Já
foram aprovados pelo BNDES R$ 400 milhões, agora mais R$ 280 milhões.
Vão fazer ali a Cidade da Copa. É todo um projeto de conjunto
residencial, um shopping center, um centro médico, ou seja, a ideia de
construir um bairro de classe média nessa região e no meio dele um
estádio. E esta área não é um vazio urbano. Estive lá, moram muitas
famílias, as pessoas plantavam ali. Essas pessoas todas serão varridas
dali, em nome de um empreendimento imobiliário que tem como cerne, ou
motivação central, um estádio condenado ao abandono e a produzir dívidas
públicas.
A Fifa e o Comitê
Olímpico exigem instalações esportivas num padrão arquitetônico e
tecnológico que estão muito além da capacidade dos países?
O
caso da África do Sul no ano passado é emblemático. Um país onde o
futebol tem um apelo popular, sobretudo na população negra e pobre,
porque a classe média é adepta do rugbi. Você pega os jornais de grande
circulação e só vê rugbi e futebol europeu, numa clara rejeição ao
futebol local, por ser este apoiado pelos pobres. Mesmo assim, fizeram
estádios caros, dentro das exigências da Fifa. Até mesmo o Globo Esporte
exibiu recentemente matérias que apresentaram o quadro de abandono e
inutilidade da maioria dessas instalações. Alguns em cidades pequenas,
como Iokkane e Mpulanga, cujos governos locais não têm recursos para
manter estes novos elefantes brancos em sua paisagem.
E
na África do Sul os movimentos sociais foram muito fortes. Isso é um
dado novo. Nos últimos 10 anos vem se criando uma consciência de que
esses megaeventos são muito caros, são feitos com dinheiro público e tem
que deixar algum legado para a população. Isso é um dado que é recente
na história desses megaeventos. A África do Sul promoveu diversas
manifestações.
No caso da China, um
governo altamente autoritário, também houve manifestações. No percurso
da tocha olímpica, pelo mundo, vários movimentos internacionais se
interpuseram à marcha para criticar a postura do governo chinês em
relação ao Tibet. O Comitê Olímpico Internacional sabe que tem nas mãos
um produto muito caro, que é a imagem dos jogos olímpicos. Não interessa
ao comitê manchar essa marca valiosíssima. Não interessa que os jogos
apareçam como algo que causou um prejuízo à cidade, ao país, ou que
esteja associado a movimentos e interesses que o senso comum renegue.
Então, o comitê solicitou ao governo chinês que ele não fosse tão
autoritário assim, que ele permitisse que a sociedade civil fizesse
manifestações. Claro, em locais distantes, fora do alcance da mídia
internacional, mas que fizesse isso. As pessoas que quisessem fazer um
ato tinham que se dirigir até a autoridade policial mais próxima e fazer
o pedido. O que fez o governo chinês? As pessoas se dirigiam à
delegacia, faziam o registro e eram presas no ato. Só saíram depois que
acabaram as olimpíadas. Então, eu vou concordar com o professor Carlos
Vainer que vem trabalhando com o conceito de “cidade de exceção”. Você
cria essa cidade de exceção, um ambiente jurídico-político diferente,
que paira sobre as normas estáveis do estado de direito, e coloca o
evento como se fosse algo grandioso, reluzente, que cai do céu como uma
solução para os males do país. Vou lembrar o discurso do presidente Lula
na Dinamarca: “Finalmente o Brasil conquistou sua cidadania
internacional”. O que significa isso? Significa apenas você realizar uma
olimpíada, não é você conquistar patamares superiores de educação,
saúde, habitação, saneamento...
No
caso dos jogos de Atenas, o governo quer apagar da sua história. Foi um
evento que apenas expôs as dificuldades do país. Um país que vive hoje
uma crise imensa também em função da dívida desse megaevento. Isso não
interessa ao Comitê Olímpico. Por que Atenas entrou no jogo? Porque
Atenas empresta ao Comitê Olímpico uma legitimidade que o movimento
olímpico precisa ter. O olimpismo vem lá dos tempos clássicos da Grécia
antiga, de Olímpia. Então, são supostamente fiéis a uma história de
longa data. Atenas entrou para emprestar credibilidade, dar legitimidade
e acabou causando vários problemas. No ano passado, em novembro
realizamos o ETTERN-IPPUR, uma conferência internacional sobre cidades e
megaeventos. Diversos estudiosos vieram de outros países para
debatermos esse tema emergente. Da Grécia veio o Stavros Stavrides,
professor da Universidade de Atenas. Ele nos trouxe um panorama bastante
crítico de tudo o que ocorreu no país antes, durante e após as
olimpíadas. Da mesma forma, contamos com outro acadêmico, o Alan Mabin,
da África do Sul, para relatar os processos ali ocorridos. Em comum,
vimos o autoritarismo, a ausência de diálogo, a repressão aos movimentos
sociais, os gastos elevados e o legado ínfimo.
É real esse ideário de que o megaevento vai desenvolver uma cidade, um país?
A
partir do estudo que fiz acerca dos Jogos Panamericanos no Rio pude
comprovar que não. A previsão inicial era gastar R$ 250 milhões e foram
gastos R$ 3,7 bilhões, e mais de 90% foi investimento público. Ou seja,
um gasto muito alto, quinze vezes mais que o evento que o antecedeu, os
Jogos Panamericanos de Santo Domingo, em 2003. E um gasto num evento que
comprometeu seriamente a saúde, a educação da cidade porque a
Prefeitura desfinanciou diversos setores. Vou citar só dois casos: o Rio
viveu a maior epidemia de dengue da sua história porque se desmobilizou
no enfrentamento desta questão, e em outubro de 2007, três meses após
os Jogos, a encosta do Túnel Rebouças desceu, soterrou a entrada do
túnel. Felizmente sem mortes, apenas o dano para a circulação de
veículos. Qual foi o motivo disso? Existe uma empresa, a GeoRio, que
monitora todas as encostas da cidade. A partir de 2003 a Prefeitura
reduziu a 1/3 o contrato feito com a GeoRio. Então ela reagiu assim,
como que quisessem dizer: “Tá bom, vocês fingem que pagam e eu finjo que
vou fazer meu trabalho”. Felizmente não houve vítimas, mas desmoronou a
entrada de um túnel importantíssimo para a cidade do RJ. Lembro as
palavras de um colega que participou do Comitê Social do Pan (eu
participei da fundação desse comitê no ano de 2005), em uma entrevista
numa rádio do Rio: “O Pan se ergue sobre montanhas de cadáveres”,
relatando a situação dos hospitais públicos municipais que antecederam
os jogos Pan.
No caso de Santo
Domingo, estive lá para conferir o legado do evento. Ele custou 240
milhões de dólares, oito vezes mais que o inicialmente previsto. Toda a
periferia da cidade foi relegada ao abandono. Apenas a zona leste, que é
a zona de expansão do capital imobiliário, foi beneficiada. A cidade
consolidou com o Pan 2003 sua natureza segregada. Neste quadro de
injustiça social, uma liderança nacional, o padre salesiano Rogelio
Cruz, da teologia popular, mobilizou a sociedade contra os desperdícios e
acintes dos jogos na República Dominicana e foi intensamente censurado e
perseguido. No dia da abertura dos jogos, Rogelio Cruz liderou, a
partir de Cristo Rey, bairro pobre da capital, uma passeata de 500
manifestantes, portando uma tocha da fome (paródia à tocha olímpica). O
protesto, que se propunha a denunciar a situação nacional (e não impedir
ou boicotar o evento) foi violentamente reprimido pela força policial
militar, a tiros de escopeta e gás lacrimogêneo. O bairro manteve-se
militarmente ocupado durante todo o evento. O então presidente da
República, Hipólito Mejía, declarou à imprensa que o referido padre, a
quem designava de “o novo Mao Tse Tung dominicano”, padecia de problemas
psíquicos. O acesso ao aeroporto foi ampliado e melhorado, de forma que
o projeto de cidade é claramente desenvolver o turismo, que é um dos
esteios da economia nacional. A situação dos pobres não foi afetada,
exceto pelo aumento da dívida externa junto ao FMI, que acaba incidindo
justamente sobre os setores de investimento em serviços fundamentais à
população de baixa renda. Ao menos, o Pan 2003 não desperdiçou tanto
dinheiro em instalações, como fez o Pan do Rio.
No
caso dos Jogos deste ano, em Guadalajara, no México, o que venho
acompanhando à distância sugere os mesmos problemas gerais. A vila
panamericana, por exemplo, já mudou de lugar três vezes, por
desrespeitar a legislação e atacar os direitos dos pobres, que reagiram e
continuam reagindo. Inicialmente a vila estava prevista para ser
edificada em Parque Morellos, vizinho à área central da cidade, com
objetivos de revitalização do bairro e aproveitamento dos atrativos
históricos do centro. Foi transferido o projeto para o Parque Alameda, e
deste para um terceiro local, El Bajío, no município de Zapotan, onde
também encontra protestos populares intensos, posto que implica em
remoção forçada de população residente. Todavia, estando já há poucos
meses do evento (que ocorrerá em outubro), mesmo com embargo jurídico, o
governo nacional mexicano, pressionado pela Odepa e pelos empresários
envolvidos, interviu e decretou que a vila não poderia deixar de ser
edificada no local, a despeito dos moradores afetados.
Em
suma, em todas as edições de megaeventos esportivos surgem as mesmas
promessas, que não são cumpridas. Não por acaso, as últimas edições dos
jogos olímpicos expressam um descontentamento crescente e a eclosão de
movimentos civis anti-olímpicos. O auge desta “crise” foi Atenas (jogos
de 2004), que, como vimos, custou elevadas cifras, gerou prejuízo e
pouco beneficiou a população local. Preocupado com o desgaste da imagem
olímpica, no ano seguinte, o COI elegeu Londres para sede de 2012 com
base na dimensão “social” do projeto, que apontava para a completa
regeneração urbana de uma zona desindustrializada, decadente. Um projeto
que olhava para a periferia da cidade e que, de alguma forma, resgata o
mito do modelo Barcelona, que conseguiu conjugar a grandiosidade do
evento com projetos de revitalização de zonas decadentes e extensão de
infra-estrutura urbana para o subúrbio. Todavia, mesmo em Londres,
podemos observar um processo arbitrário de retirada de populações e
sobretudo pequenas empresas (umas 300, segundo o geógrafo Mike Raco, do
King´s College London), da área onde se ergue o Parque Olímpico. Ou
seja, não era um vazio abandonado, ali havia muita gente e uma vida
econômica intensa.
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