A universidade se universaliza?

Daniel Cassol – de Porto Alegre
Há uma polêmica sobre os números da expansão do ensino superior federal no país. Para alguns, a criação de novas universidades expõe carências de infraestrutura e déficits no número de professores. Para outros, estaríamos diante de uma crise de crescimento, pois os investimentos aumentaram
Nos últimos anos, várias regiões do Brasil vêm experimentando um processo de transformação proporcionado pela chegada de universidades federais. Do pampa gaúcho ao coração da Amazônia, passando pelo semiárido nordestino, pelo Recôncavo Baiano, pelo Vale do Jequitinhonha e pelas regiões de fronteira, a interiorização decampi e a criação de novas instituições federais de ensino superior não somente democratizaram o acesso ao ensino superior como desencadearam uma nova dinâmica de desenvolvimento em regiões economicamente deprimidas.

Os números são expressivos. Se até o ano de 2002 o Brasil contava com 43 instituições de ensino superior (IES) federais espalhadas em 148 campi, em 2012 o número chegou a 59 (com 274 campi), podendo alcançar 63 em 2014 (com um total de 321 campi).

A expansão da educação superior no Brasil recebeu impulso com a criação, em 2007, do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Segundo a página do Ministério da Educação (MEC) na internet, “As ações do programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas”.

Um balanço do Reuni divulgado em junho deste ano pelo MEC apontou que as vagas anuais de ingresso na graduação mais que dobraram nas federais, passando de cerca de 110 mil, em 2003, para mais de 230 mil em 2011. No mesmo período, o total de matrículas em instituições federais passou de 638 mil para mais de um milhão, ainda segundo o MEC. Com o Reuni, foram criados 2.046 novos cursos de graduação.

INFRAESTRUTURA E CONTRATAÇÃO O ritmo acelerado da expansão das universidades, no entanto, vem sendo acompanhado por problemas relacionados à falta de infraestrutura e à insuficiência de professores e técnicos administrativos. Principal crítico das deficiências do processo de expansão, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) começou a elaborar em agosto deste ano um dossiê para apontar as dificuldades enfrentadas pelas instituições criadas e ampliadas a partir do Reuni.

A entidade aponta a falta de laboratórios, bibliotecas e equipamentos em grande parte das novas unidades. Em um dos casos mais chamativos, um laboratório foi improvisado dentro de um banheiro na Unipampa, no Rio Grande do Sul. Há universidades funcionando em escolas municipais e até mesmo hotéis desativados.

Para a presidente do Andes, Marinalva Silva Oliveira, a expansão das universidades não levou em consideração um passivo existente na contratação de novos professores, problema agravado com a criação de novas unidades e a falta de condições físicas adequadas.

“Quando o Reuni foi criado já havia problemas. Faltavam professores e não havia reposição. Ou seja, havia um passivo. Já as universidades que foram criadas apresentavam problemas de infraestrutura. E dentro de um passivo existente, o governo, que não tinha sanado os problemas anteriores, implanta um programa de expansão”, critica Marinalva. Para a dirigente, a qualidade do ensino fica comprometida. “A universidade, que é baseada no tripé ensino, pesquisa e extensão, passa a ter apenas ensino. Por falta de equipamentos, laboratórios e professores, as universidades não estão dando conta de fazer pesquisa e extensão”, aponta.

Foto: Reprodução
“A universidade, que é
baseada no tripé ensino,
pesquisa e extensão, passa a
ter apenas ensino. Por falta de
equipamentos, laboratórios e
professores, as universidades
não estão dando conta de fazer
pesquisa e extensão”.


Marinalva Silva Oliveira,
presidente do Andes























RITIMOS EM DESCOMPASSO Na avaliação do pesquisador do Ipea Paulo Corbucci, uma das explicações para as dificuldades encontradas diz respeito a um descompasso entre o ritmo de expansão estabelecido pelo MEC e o ritmo legal das políticas públicas. “É provável que haja problemas em relação à sincronia entre diversas ações como, por exemplo, a realização de concursos, contratação dos aprovados e o efetivo exercício desses. Deve-se ter em conta que, por serem instituições públicas, as universidades devem cumprir requisitos estabelecidos por lei no que se refere a licitações e concursos, o que pode contribuir para retardar o início da oferta dos serviços por elas prestados”, analisa Corbucci.

Na mesma direção, o presidente da Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior (Proifes), Eduardo Rolim, entende ser necessário mais tempo para as condições se estabilizarem. “Esse processo envolve questões complexas, de contratação e adaptação de professores e de técnicos administrativos, de construção de prédios, de laboratórios, etc”, afirma.

O Ministério da Educação (MEC) reconhece que houve atraso em algumas obras, mas atribui esse obstáculo ao processo de crescimento do próprio Brasil e às dificuldades decorrentes em relação à contratação de mão de obra e compra de materiais, garantindo que os investimentos acompanham o cronograma previsto pelas instituições.

Ainda assim, com as críticas realizadas pelas entidades docentes, como o Andes e o Proifes, a Secretaria de Educação Superior (Sesu) do MEC instalou em julho deste ano uma comissão para acompanhar o andamento das ações para a consolidação da expansão das universidades e a situação dos egressos das universidades.

“Queremos identificar os egressos, o que estão fazendo, o impacto da graduação na vida deles e nas regiões. As universidades levaram para o interior o seu padrão de qualidade, e isso é muito relevante”, afirma o secretário de Educação Superior, Amaro Henrique Pessoa Lins.
Foto: Fora do Eixo
Manifestação dos professores do Estado de São Paulo em Assembléia na Praça do Morumbi

 






















ORÇAMENTO E EXPANSÃO De acordo com o balanço divulgado pelo MEC em junho, no processo de expansão da rede federal de ensino superior foram criadas, entre 2003 e 2011, 42.099 vagas de trabalho por meio de concurso, sendo 21.421 para docentes e 20.678 para técnicos administrativos.

Em maio, o Congresso aprovou o Projeto de Lei nº 36/2012, que autoriza o MEC a criar mais 77 mil cargos efetivos, cargos de direção e funções gratificadas para as universidades e os institutos federais. A previsão é de 43.875 cargos de professor, 27.714 de técnicos administrativos, 1.608 de direção e 3.981 funções gratificadas. Segundo Amaro Lins, ainda em 2012 devem ser abertos concursos públicos para a contratação de 8,7 mil professores.

Em relação à infraestrutura, o MEC informou que de um total de 3.885 obras, 2.417 já estão concluídas (62%) e 1.022 (26%) estão em fase de execução. As obras paralisadas ou com contratos cancelados totalizam 163 (4%), e as demais estão em processo de licitação. O governo federal investiu R$ 8,4 bilhões na expansão e reestruturação das universidades federais desde o começo do processo de expansão, em 2003.

De acordo com Paulo Corbucci, do Ipea, o orçamento federal destinado às universidades vem crescendo de forma considerável, sobretudo se os últimos 20 anos forem tomados como referência. Entre 2008 e 2011, período referente ao último Plano Plurianual (PPA), os investimentos em infraestrutura tiveram crescimento real de 242%, enquanto os repasses para o funcionamento das instituições federais de ensino superior (Ifes) aumentaram 17%, excluindo-se os hospitais de ensino.

“É possível que haja um descompasso entre o que vem sendo investido na expansão e adequação da rede federal e o que é transferido para o seu funcionamento”, indica Corbucci. “Não se pretende afirmar que tais proporções devessem ser equivalentes, mas, talvez, que um maior equilíbrio entre ambas as rubricas pudesse reduzir parte das dificuldades identificadas”, esclarece.

FALTA DE PROFESSORES Para a presidente do Andes, o descompasso entre o orçamento federal e o ritmo de expansão das universidades reflete uma política de governo baseada numa concepção privatista do ensino superior. “A visão é muito empresarial, de gastar menos e fazer mais, e isso não cabe na universidade”, afirma Marinalva Oliveira. Outro ponto crítico, na visão do Andes, é o déficit de professores. O número de contratações nos últimos anos teria sido insuficiente, e a iniciativa do MEC de criar a figura dos professores temporários teria impactado negativamente na qualidade do ensino. Com a aprovação do projeto de lei para a contratação de profissionais, o Andes cobra agora a apresentação de um cronograma de concursos públicos.

A reestruturação da carreira docente foi a principal pauta de reivindicação dos professores das universidades federais, que em maio deste ano entraram em uma greve desgastante para o governo e para as universidades. Em agosto, o governo federal assinou um termo de acordo com o Proifes para o envio ao Congresso do projeto de lei que concede reajuste à categoria.

Pela proposta do MEC, o aumento varia entre 25% e 40%, sobre os salários de março, já reajustados, e será pago em três etapas, nos anos de 2013, 2014 e 2015 — na proporção de 40%, 30% e 30%. O custo total será de R$ 4,2 bilhões até 2015. Os professores titulares com dedicação maior, que receberão o aumento maior (40%), terão os vencimentos elevados de R$ 12,22 mil para R$ 17,05 mil. Já um professor doutor recém-ingressado na carreira passa a receber salário de R$ 8,4 mil durante o estágio probatório. Concluído esse período, de três anos, chegará a R$ 10 mil.

Foto: Elisa Bahiense
A reestruturação da carreira
docente foi a principal pauta de
reivindicação dos professores
das universidades federais, que
em maio deste ano entraram
em uma greve desgastante
para o governo e para as
universidades. Em agosto, o
governo federal assinou um
termo de acordo com o Proifes
para o envio ao Congresso
do projeto de lei que concede
reajuste à categoria
O Andes afirma que a proposta de reajuste apresentada pelo MEC não dá conta de recompor as perdas salariais dos últimos anos, que desvalorizaram a carreira docente em relação a outras carreiras do serviço público federal. Como comparativo, Marinalva cita a lei aprovada em julho deste ano que transforma 90% do total de R$ 15,7 bilhões em dívidas das faculdades particulares com a União em bolsas de estudo do Programa Universidade para Todos (Prouni). “Quando defendemos R$ 8 bilhões para a reestruturação da carreira, o governo afirmou que não tinha dinheiro. É uma concepção política, de privatização do ensino. A qualidade das universidades públicas vai decair”, alerta a presidente do Andes.

Segundo o portal do MEC, o Prouni “tem como finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior”. O Ministério informa ainda que as faculdades inscritas no programa recebem isenção de tributos.

Eduardo Rolim, do Proifes, sustenta, por outro lado, que o aumento de recursos destinados às universidades foi considerável nos últimos anos. Ele pode ser incrementado com a aprovação, no Plano Nacional de Educação, dos 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação. Segundo Rolim, o acordo assinado pela entidade com o governo federal vai recuperar em 2013 o patamar salarial de 2010, o maior desde a edição do Plano Real.

“Há que se reconhecer que as verbas de OCC (Outros Custeios e Capital) das instituições federais cresceram muito nos últimos anos, mas é claro que o aumento do número de vagas, de cursos e de universidades cria novas demandas que têm de ser atendidas”, afirma o presidente do Proifes.

ESTAGNAÇÃO PARTICULAR O pesquisador do Ipea Paulo Corbucci analisa que o setor privado da educação superior vem apresentando uma certa estagnação, evidenciada pelo baixo crescimento das matrículas e de novos ingressantes nos últimos anos. Entre 2007 e 2010, informa Corbucci, as matrículas nas universidades particulares ampliaram-se em apenas 10%, abaixo do verificado nos anos anteriores. “Resultados ainda menos favoráveis referem-se aos novos ingressantes, cujo número se manteve praticamente inalterado nos últimos quatro anos”, explica o pesquisador. Na ausência do financiamento público, concedido por intermédio do Programa de Financiamento Estudantil (Fies) e do ProUni, o desempenho poderia ter sido ainda mais desfavorável.

A crise de estagnação no setor privado é um problema mais grave a ser enfrentado, na medida em que, para o pesquisador, a adequação dos investimentos públicos na expansão da rede federal tenha mais a ver com a gestão dos recursos. “Entendo que superar a crise de estagnação constitui tarefa bem mais árdua que a da superação da crise de crescimento, a qual diz respeito principalmente à gestão da política”, avalia.

FALTA DE PRIORIDADES Se o aumento dos recursos para a educação e a reestruturação da carreira são preocupações dos docentes, a expansão das universidades vem recebendo críticas devido a uma suposta falta de prioridades na criação de novas unidades e instituições. Em seminário da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ), realizado no mês de agosto em São Paulo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que a expansão das universidades foi feita sem planejamento e não resultou em qualidade na formação de novos profissionais.

“Não precisa ter universidade para todo o lado. Senão vira um balcão de empregos. Há muito desperdício do dinheiro público. Estão criando universidades em todos os lugares e o resultado é pífio em termos de formação”, afirmou o ex-presidente.

O secretário de Educação Superior Amaro Lins sustenta que o processo de expansão foi baseado no diálogo com as universidades e levando em consideração as necessidades de cada região. “O Ministério da Educação focou a expansão para o interior dos estados, o que era uma antiga demanda, observando os requisitos de necessidade. Essas regiões passaram por uma grande transformação com a chegada das universidades”, destaca o secretário.

O processo de interiorização das IES era necessário na medida em que, na maioria dos casos, o setor privado não investia. A avaliação é de Paulo Corbucci. “Por si só, a instalação de novas universidades já abre uma janela de oportunidades para essas localidades, tanto em termos educacionais, quanto econômicos. Além disso, há que se ressaltar a importância da expansão dos Ifets [Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia], que ofertam cursos de bacharelado, licenciatura e tecnológicos”, alerta o pesquisador.

Entre 2003 e 2010, o Ministério da Educação ampliou a rede federal de educação profissional com a criação de 214 novos Ifets, que se somaram aos 140 existentes anteriormente. A previsão até 2014 é de se chegar a 562 unidades, com 600 mil vagas no total.

ESTATAL E PRIVADO “A demanda por ensino superior se justifica em todo o país pela necessidade de profissionais qualificados, nas áreas de tecnologia, de licenciatura, entre outras. Não é possível imaginar a inexistência de demanda quando a imensa maioria das matrículas no ensino superior está na rede privada. Muitos desses cursos têm avaliações ruins nos exames”, defende Eduardo Rolim, presidente do Proifes. “Quando se cria uma nova universidade ou um novo campus em uma região onde não existia ensino superior público, se cria toda uma nova pressão social positiva. A cidade muda, atraindo gente jovem, com espírito criador, atraindo empresas, enfim, criando uma nova dinâmica na sociedade local, além de se dar acesso ao ensino público aos habitantes locais”, complementa.

Paulo Corbucci, do Ipea, sustenta que os investimentos na educação superior não colidem com a prioridade que se deve atribuir à universalização da educação básica no Brasil. Para o pesquisador, o país deve ampliar a conclusão da educação básica na idade adequada e viabilizar condições para o acesso e a permanência dos jovens no ensino superior. A continuidade da expansão da oferta de vagas pelas redes públicas, a ampliação dos mecanismos de financiamento público ao setor privado e o crescimento econômico com ampliação do poder aquisitivo das classes C, D e E são apontados pelo pesquisador como eixos a serem trabalhados no cenário futuro.

“A política de expansão da educação superior pública constitui uma das principais inflexões ocorridas no campo da política educacional brasileira nas duas últimas décadas. Em que pesem os ajustes serem necessários a qualquer política pública, creio que estão sendo fortalecidas as bases para que a educação superior pública possa exercer o seu papel em favor do desenvolvimento da sociedade brasileira”, afirma Corbucci.
Foto: Denise Mayumi

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