Wagner Xavier de Camargo
Antropólogo
e doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Luis Henrique TOLEDO & Carlos Eduardo COSTA (orgs.). Visão de jogo: antropologia das práticas esportivas. São Paulo, Terceiro Nome, 2009. 279 páginas.
Ver, atributo da visão, será reconvertido em olhar, disposição incorporada a partir de treinamentos específicos, que têm sua aquisição nas técnicas social e culturalmente construídas. Embora nasçamos com a capacidade de ver, não vemos indiscriminadamente, mas somente aquilo que somos treinados pelo exercício prático (p. 243).
Essa
consideração de Claudemir Santos sobre os treinamentos práticos nas
escolinhas de futebol, para que alunos desenvolvam a habilidade não
apenas de ver, mas de olhar e "interpretar" a melhor
ação ou jogada, serve de mote introdutório desta resenha e perpassa
os dez ensaios organizados por Luiz H. Toledo e Carlos E. Costa em Visão de jogo.
Assim
como mostrou Alfredo Bosi (1988), que distintos momentos da história
do pensamento ocidental podem ajudar a redimensionar nosso conceito
de "olhar", a obra em foco destaca que, mais do que uma antropologia
do futebol ou dos esportes, temos uma antropologia das práticas
esportivas, multifocal, polifônica e polissêmica no tocante às
práticas corporais engendradas em ambientes esportivos.
Com
exceção do último artigo, os textos reunidos nesta coletânea são
sistematizações de estudos anteriores de seus autores - textos de
iniciação científica, dissertações de mestrado e trabalho de
pós-doutorado -, a maioria vinculada ao projeto quadrianual "Jovem
Pesquisador" financiado pela Fapesp. No geral, eles trazem percursos
investigativos via práticas etnográficas: arsenal teórico-metodológico
singular no escopo antropológico e de fundamental estímulo para
jovens investigadores. Uma das características mais interessantes de Visão de jogo
é apresentar ao leitor possibilidades aleatórias de leitura. Os
artigos são independentes e podem ser lidos em qualquer sequência.
Sugestão de um percurso de leitura
Diante
do amplo espectro teórico ali discutido, proponho agrupar os textos
por temática ou por complexidade de discussão teórica, quando a
aglutinação temática não se interpuser.
Primeiramente,
dois artigos sobre voleibol: "Voleibol no interior", de Leonardo
Oliveira, e "Voleibol: um espaço híbrido de sociabilidade esportiva",
de Juliana Coelho. O primeiro correlaciona o éthos dos
voleibolistas com a formação de um estilo próprio de jogar, com
vistas a mostrar se, de fato, a forma de praticar esta modalidade em
nosso país definiu um "estilo à brasileira" (p. 113). Para tanto, o
autor utiliza-se do conceito de Luiz Henrique Toledo (2002),
denominado "formas-representações", que basicamente articula a forma
do jogar e o plano da representação social e histórica que envolve
tal ato. Com base num extenso (em parte desnecessário) resgate
histórico das alterações nas regras desta modalidade durante o século
XX, o autor conclui que há uma razão simbólica presente no
"imaginário brasileiro a respeito da criatividade, da ginga" (p.
137), a qual, por sua vez, incide diretamente na construção do ser
esportista no Brasil.
Na
sequência, Juliana Coelho introduz a discussão das relações de
gênero no esporte. Se a masculinidade está colada à prática
futebolística, um "modelo esportivo híbrido" (p. 81) é vinculado ao
vôlei, com a predominância de atributos do universo feminino. O
mérito deste artigo é exatamente abrir a perspectiva da cena
esportiva às pluralidades relacionadas com o sexo e o gênero, campo
em geral pouco explorado na área de estudos sociológicos e
antropológicos das práticas esportivas.
Exatamente
esta é a ponte que leva ao artigo "Jogando em vários campos", de
Lara Sthalberg. A autora propõe-se a investigar "qual é o espaço
que as torcedoras reivindicam no 'universo futebolístico', como elas o
têm conquistado e qual é a imagem que têm delas mesmas, em contraste
com a imagem que os homens fazem delas" (p. 142). Assim,
acompanhando-as nos estádios e também em seus blogs ou páginas
de redes sociais na internet, a autora identifica a visão
estereotipada que se formou em torno delas, principalmente por serem
consideradas torcedoras "de fora", isto é, aquelas que não têm,
supostamente, uma compreensão profunda do esporte como ele é. Por
outro lado, ao entrevistar mulheres torcedoras, ela constatou que
quando se tornam praticantes, suas opiniões sobre o jogo passam a ser
respeitadas, "por ser uma visão 'de dentro', portanto, legítima" (p.
158). Por fim, dois escorregões de Sthalberg precisam ser apontados:
o primeiro é tratar todas as torcedoras dentro de uma única
categoria (mulher), sem fazer menção a marcadores de diferença (BRAH,
2006) como etnia/"raça", geração, classe social; e, por extensão,
nas considerações finais, a autora afirma que gênero deve ser tomado
como um método de análise (p. 160), mas não discute esta questão com
base em referências importantes da literatura a respeito, como Judith
Butler e Tereza de Lauretis.1
Para
finalizar o bloco das pesquisas de iniciação científica, o artigo
"Futebol e basquete made in Brazil", de Júlio Palmiéri mostra "como
se dão as transferências envolvendo atletas profissionais do basquete
nacional" (p. 112) para o exterior, numa perspectiva comparada ao
futebol. À semelhança do processo de emigração de jogadores de
futebol analisado por Carmen Rial (2006), os basqueteiros aprendem o
"estilo norte-americano" de jogo a partir de um "contato
esportivo-cultural" e introjetam o habitus do esportista de
alto nível. A proposta do artigo é muito boa e merece ser levada
adiante, talvez sob à luz de pressupostos analíticos de Rial (2008),
que examina não só o "projeto de vida" daqueles que emigram com sua
família, bem como sua circulação entre os times europeus.
O
segundo grupo de artigos evoca o tema do sagrado e do profano em
casos singulares. Como introdução e de modo bastante lúdico, "Deus e o
Diabo na terra do futebol", de Thiago Oliveira, traz uma
interessante e anedótica história das preferências sobre o mascote da
equipe do América Football Club. O autor, na realidade, direciona a
proposta para a disputa totêmica em relação aos símbolos do clube
(diabo ou águia), que, ao longo do tempo, se alternaram como mascote
do time. O grande mérito do artigo é ter resgatado para esta área de
estudos um autor clássico na antropologia como Lévi-Strauss e sua
discussão sobre o totemismo. Embora do ponto de vista teórico não
seja "denso", o artigo requer certo background em leituras antropológicas, o que talvez seja um obstáculo para os leitores leigos no assunto.
Em
seguida, Reinaldo Aguiar apresenta parte da análise empreendida em
sua tese de pós-doutorado em "A sociabilidade esportiva das igrejas
Renascer em Cristo e Bola de Neve". A partir dos referenciais de
Lévi-Strauss (sobre magia e crença) e de Radcliffe-Brown (sobre
religião como ação), o autor adota o paradigma
estrutural-funcionalista: "abandona a pergunta sobre a origem e a
evolução da religião [para estudar] a função desta e os efeitos que
produz sobre o grupo social analisado" (p. 53). A dimensão do
simbólico via rito é trabalhada pelos pressupostos analíticos de
Clifford Geertz (1989) buscando os subsídios históricos do surgimento
de duas igrejas pentecostais. Identificam-se os tipos de performances
corporais entre os jovens fiéis para evidenciar o que o autor chama
de "esportivização do sagrado" (p. 67). Tal fenômeno ocorre nas
duas realidades religiosas etnografadas, mas com destaque para a Igreja
Bola de Neve.
Duas
abordagens compõem o agrupamento, cujo tema principal é o futebol.
Propondo uma leitura historiográfica, Sandro Francischini lança-se
num esquadrinhamento da "Era Havelange" e examina o que chamou de "a
difícil nacionalização do futebol brasileiro". Artigo denso do ponto
de vista histórico, bem redigido e sofisticado na argumentação,
transporta o leitor para o centro das turbulências econômicas, políticas
e sociais pelas quais passava o Brasil entre os anos de 1971 e 1975,2
trajetória pontuada pelos acontecimentos no universo futebolístico
do período. O autor resgata as tensões e os embates entre João
Havelange, presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD)
entre 1956 e 1974, e os clubes de futebol estaduais, que brigavam por
mais vagas no campeonato nacional, bem como os bastidores políticos do
projeto de integração nacional que tinha o futebol como alavanca
principal de propaganda. O ponto alto do texto é não só a narração
dos estratagemas de Havelange para concorrer à presidência da Fifa,
mas também a discussão sobre o reordenamento interno do futebol
brasileiro e da própria CBD, após seu afastamento em 1974.
Claudemir
dos Santos, em "Repensando o estilo à brasileira", propõe uma
reflexão sobre o complexo processo de aprendizagem do futebol no
Brasil, investigando o âmbito do ensino institucional: as escolinhas
de aprendizagem esportiva. Dom, jeito inato e "canhotismo" são
elementos que permeiam algumas categorias sociais acerca do "saber
jogar futebol", e Santos analisa como eles se entrecruzam com o
modelo instituído de ensino-aprendizagem. O autor mostra que o modelo
de formação de atletas presente em tais categorias responde tanto às
transformações sociais mais gerais na sociedade brasileira, como às
mais específicas no âmbito do próprio futebol. Porém, ressalta que
isso não significa o fim de um modelo romântico de futebol, mais
espontâneo e criativo, para o estabelecimento de outro, mais técnico,
racional, no qual a aprendizagem se dá por "camisas de força" do
treinamento de rendimento. Reconhece que "essas dimensões coexistem
em constante tensão [...], numa negociação intensa e inacabada" (p.
240).
Os
dois últimos artigos, de autoria dos organizadores do volume, são, a
meu ver, reflexões fundamentais e marcos teóricos referenciais. Em
"Torneios universitários", Carlos Eduardo Costa analisa duas
competições esportivas universitárias (conhecidas como Intercursos),
das quais participara como atleta. A relação esporte-festa é, segundo
ele, estruturante das contendas, uma vez que compõe o imaginário e
as expectativas tanto dos organizadores do evento, como dos
participantes; e somente a partir dessa ambiência festiva/esportiva é
que se pode compreender o esporte universitário e as representações
sobre ele. Além disso, o autor distingue duas práticas esportivas nos
torneios universitários - "tradicionais" e "excêntricas" -,
mostrando como as últimas oferecem possibilidades de um esporte
distinto do convencional, o que abre caminho para que pensemos
alternativas para o próprio modelo esportivo de alto nível.3
Por
fim, o artigo de Luis Henrique Toledo, "Estilos de Jogar, Estilos de
Pensar", faz um releitura de dois importantes antropólogos que
discutem a questão da identidade nacional tendo o esporte como pondo
de partida: Roberto DaMatta (Brasil) e Eduardo Archetti (Argentina).
Embora a comparação descontextualizada entre estudiosos que vivenciam
diferentes realidades possa ser problemática, como admite o autor, a
discussão teórica proposta por eles, baseada em suas agendas de
pesquisa, fornece importantes pistas para a análise das práticas
esportivas. De todos os artigos apresentados na coletânea, este texto
é o que mais exige conhecimento de uma literatura específica, mas
"certamente levará a uma melhor avaliação das contribuições desses
autores na consolidação da área da antropologia das práticas
esportivas" (p. 255).
Considerações finais
Visão de jogo
pretende ampliar as considerações antropológicas acerca das práticas
esportivas a partir de diferentes abordagens analíticas e tendo como
pressuposto a diversidade do olhar. À semelhança do que ocorre com
nossa capacidade inata de ver, somente conseguiremos olhar além se
formos treinados nessa arte. O livro como um todo tem o mérito de nos
ajudar nesse sentido, adentrando o universo da antropologia e da
análise de outras práticas esportivas que não só o futebol. A obra
não opera somente na perspectiva de "ganhar mais mobilidade temática"
(p. 15) ao adotar como mote práticas esportivas (em vez de
apenas esportes), mas possibilita ampliar nossas próprias percepções
sobre o jogo em andamento no campo antropológico dos temas aqui
examinados.
Notas
1
Isso denota uma falha comum encontrada nas áreas de Educação e
Educação Física, com raras exceções. Butler, por exemplo, na maior
parte das vezes, ou não aparece como referencial teórico do gênero,
ou é citada "via" Guacira Louro, amplamente conhecida por simplificar
a análise proposta por Butler.
2
Intencionalmente ou não, sua narrativa lembra em muito a proposta de
Hans Gumbrecht (1999), que também remete o leitor ao passado, mais
especificamente ao contexto do ano de 1926.
3 Na literatura queer sobre esportes, tal fenômeno é estudado sob a designação queering in sport,
isto é, pensar em que medida o universo esportivo convencional de
rendimento pode ser superado por práticas dissonantes ao mainstream (ENG, 2006).
BIBLIOGRAFIA
BOSI, Alfredo. (1988), "Fenomenologia do olhar", in Adauto Novaes (org.), O olhar, São Paulo, Cia das Letras, pp. 65-87. [ Links ]
BRAH, Avtar. (2006), "Diferença, diversidade, diferenciação". Cadernos Pagu, 26: 329-376. [ Links ]
ENG, Heidi. (2006), "Queer athletes and queering in sport", in Jayne Caudwell (org.), Sport, sexualities and queer/theory, Londres/Nova York, Routledge, pp. 49-61. [ Links ]
GEERTZ, Clifford. (1989), "A religião como sistema cultural", in ______, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Guanabara, pp. 101-142. [ Links ]
GUMBRECHT, Hans U. (1999), Em 1926: vivendo no limite do tempo. Trad. Luciano Trigo. Rio de Janeiro, Record. [ Links ]
RIAL, Carmen. (2006), "Futebolistas brasileiros na Espanha: emigrantes porém...". Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, LXI: 163-190 [ Links ]
______. (2008), "Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior". Horizontes Antropológicos, 14(30):21-65. [ Links ]
TOLEDO, Luiz H. (2002), Lógicas no Futebol. São Paulo, Hucitec/Fapesp.
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