Segue um vídeo... opinião interessante do Jornalista Luiz Carlos Prates sobre a Copa do Mundo e os Estádios da Copa.
Dos onze jogadores do Gaúcho, sobraram apenas três
Zé Augusto e Luiz Freire não tomavam injetáveis. Luiz Carlos tratou a hepatite e sobreviveu
Alguém avisava sorrateiro no vestiário do Estádio Wolmar Salton, nos anos 70:
– Hora da amarelinha.
Quase todos os jogadores do Gaúcho de Passo Fundo esticavam o braço com a mão fechada e faziam saltar a veia à espera que o enfermeiro lhes aplicasse injeções de vitaminas ou de estimulantes, dependendo do dia. A um canto, o fogareiro aquecia o estojo de metal com água ou álcool fervente dentro do qual boiava a seringa de vidro. O enfermeiro aplicava uma dose, mergulhava a seringa no estojo, catava-a com a pinça e logo a injetava em outro. Era rotineiro.
Quase todos os clubes pequenos e médios do Estado e do país procediam assim.
Ampolas de líquido amarelo de Glucoenergan, na verdade, não passavam de glicose. O time corria mais, ou nem tanto. As aplicações eram de efeito mais sugestivo do que real. Nem eram consideradas doping. Os médicos não recomendavam aquelas agulhadas. Alguns até as proibiam. Mas o enfermeiro do clube fazia infiltrações musculares, ministrava vitaminas e, de quebra, ainda aplicava a glicose. Por vezes, uma dose de 50 mililitros era administrada em cinco braços. Na crença de que eram todos sadios no vestiário, não viam mal nisso.
Ao ferver a água no fogareiro, o responsável pelas injeções tomava a precaução normal da época contra bactérias, viroses, infecções e doenças venéreas, o maior temor daqueles dias. A fervura atingia 100ºC no fogareiro e de nada adiantava, porque são necessários 150ºC para destruir o vírus. Ninguém sabia do inimigo oculto e letal que permanecia vivo no cilindro de vidro e na agulha. A ciência só identificaria o agente da hepatite C em 1989. Até então, a seringa era uma só no vestiário.
A contaminação pelo sangue acabou se tornando um flagelo no país e patrocinou tragédias ao longo dos últimos 30 anos. Um dos primeiros a cair pela hepatite C em Passo Fundo foi o ex-goleiro Carlos Alberto, em meados dos anos 1980, com pouco mais de 30 anos de idade. Os últimos foram os pontas Leivinha e Serginho, no ano passado.
A cultura dos estimulantes granjeou pelo Interior entre os anos 1960 e 1980. Mas em nenhum outro clube do Estado foi tão mortal como em Passo Fundo, no Gaúcho. Como o vírus resulta em cirrose e câncer do fígado num período de 20 a 40 anos depois da contaminação, ainda hoje há gente morrendo ou se adoentando em consequência das agulhas da década de 1970.
Dos 11 titulares de uma formação tradicional do Gaúcho, de 1973, passados 40 anos, apenas três estão vivos. Restam os meias Luiz Freire e seu irmão Zé Augusto e o lateral-esquerdo Luiz Carlos. Os demais foram abatidos por complicações decorrentes da hepatite C, como aconteceu com o centroavante Bebeto, conhecido como o Canhão da Serra, um dos maiores goleadores do futebol gaúcho.
Da cruenta dupla de zaga dos Pontes, o central João, irmão de Daizon, não resistiu à herança do vírus. Reservas, os zagueiros Lívio e Raul Santos também foram abatidos pela hepatite.
De cada time do Gaúcho dos anos 1970 é possível identificar dois ou três mortos tendo como base a mesma causa virótica. A estatística macabra na cidade se intensificou nos últimos três anos. Desde 2010, já são 17 os remanescentes que acabaram derrubados pelo vírus HCV. Eram profissionais do Gaúcho e do 14 de Julho, o outro clube da cidade.
A relação dos mortos recentes tem Marquinhos, Laerte, Mosquito, Mica, Ilo, Lívio, Téio, Pedro, Raul Matté, Marianinho, Machado, Ivan, Cid, Tadeu Bauru, Serginho e Leivinha. Até o massagista Pinto caiu por hepatite.
Ninguém sabe o número completo das vítimas, desde 1980. Muitos saíram da cidade.
– Muita gente morreu. Muita gente vai morrer – alerta o ex-meia e hoje técnico Luiz Freire, outro mito que fez nome no Gaúcho, no Caxias, no Inter, Grêmio, Brasil-Pel e Coritiba.
No dia 22 de abril, Luiz Freire encontrou em Passo Fundo seu antigo colega Luiz Carlos. Não se viam havia anos.
Foi um reencontro emotivo.
– O Leivinha morreu, não é? Fiquei sabendo há pouco – comentou Luiz Freire.
– Pois é. Se foi mais um dos nossos. Cada um que vai (morre) deixa um clima ruim entre nós – respondeu Luiz Carlos, melancólico.
– Os caras acham que não têm nada, evitam o médico, e a doença é silenciosa e vai longe – lamentou o ex-meia.
Luiz Freire, 60 anos, sabe o que diz. Ele e Zé Augusto jamais se injetaram com estimulantes. Aprenderam com o avô. Seu Arnoldo Ellwanger, farmacêutico, ensinava-lhes a rejeitar seringas que não fossem as de casa. Aos 14 anos, Luiz Freire já sabia fazer aplicações. Começou profissional no Gaúcho em 1971 e, um ano depois, entrou na faculdade de Medicina.
Sempre que via o enfermeiro no vestiário, advertia os colegas sobre as seringas compartilhadas. Não era ouvido.
Luiz Carlos não dava atenção ao amigo. Seguia tomando a glicose porque os demais jogadores estavam lá, eles tinham de passar por cima do adversário em campo e, afinal, o regulamento permitia.
– Meu negócio era a Tiaminose, tomava quase sempre. Só não aplicava a gluco (Glucoenergan) – admitiu Luiz Carlos.
Ex-lateral esquerdo, duro marcador de Valdomiro, Flecha e Tarciso, Luiz Carlos relutou em se submeter ao teste para o vírus HCV. Quem o dobrou foi um antigo atacante do Gaúcho. Roberto Antonello tratou a sua hepatite e se dedicou a persuadir os colegas a fazer o exame. Andava pelo Interior vendendo seguros e aconselhando antigos jogadores.
– O Roberto salvou minha vida. Por causa dele, fiz o teste para hepatite. Deve ter salvo muita gente pelo Estado – disse Luiz Carlos.
O terceiro sobrevivente do time de 1973 mora hoje em Santo Antônio da Patrulha. José Augusto Freire, como o irmão, era dos mais novos do grupo do Gaúcho. Além dos conselhos do avô Arnoldo vivos na cabeça, não via muita necessidade em tomar glicose injetável para correr.
– O nosso preparador era dos melhores, da Universidade de Passo Fundo. Fazia a gente correr – explicou Zé Augusto.
Corriam na cidade, pela estrada, no asfalto, e puxavam pneu na caixa de areia.
Havia um 12º jogador daquele time. Chamava-se João Francisco Guimarães, o Paraná. Há muito havia deixado Passo Fundo. Ninguém sabia dele, e já constava do placar dos mortos montado nos bate-papos da Praça Central.
Mas Paraná era mais esperto do que imaginavam. Na hora da aplicação com a letal seringa de vidro, em meio à euforia dos vamos lá, ele dava um jeito na situação.
– Eu pegava uma ampola, dizia que ia tomar na farmácia, deixava o vestiário e colocava tudo no lixo – contou.
Paraná corria muito. Tinha um preparo físico avantajado. Esnobava os estimulantes, assim como os irmãos Freire.
Em algumas manhãs de domingos de jogos à tarde, o grupo assistia à missa na catedral. No caminho de volta à concentração no estádio, os jogadores passavam na salinha que o enfermeiro do clube mantinha no centro de Passo Fundo. Tomavam as injeções e se recolhiam à espera da partida. Paraná era dos poucos que não entravam na saleta. Passava reto.
O enfermeiro atendia o time do Gaúcho e a Samdu, antigo Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência. Na salinha, fazia aplicações em quem o procurasse e dali saía a domicílio. Orgulhava-se do seu conjunto de 22 agulhas de aço, as peças com as quais infectou inocentemente grande parte de Passo Fundo.
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